"There is a kind of lazy pleasure in useless and out-of-the-way erudition" - JLBorges Arte,história,ciência e cultura em pequenos rectângulos perfurados
Foram produzidas 25 longas metragens nas últimas 7 décadas (1962-2021) da saga James Bond/007, tornando-se num fenómeno cultural à escala global.É trans-geracional, resistente à passagem do tempo, adaptou-se ao fim da Guerra Fria, que lhe dava contexto histórico, e justificava o espião/agente secreto com licença para matar.Passou a combater vilões solitários ou poderosas corporações criminosas e entrou no século XXI mais contido e depurado da sua caracteristica misoginia e sexismo que lhe poderiam valer dissabores mediáticos
Os ingredientes deste sucesso são múltiplos mas acentam essencialmente nas qualidades canónicas do herói clássico, solitário, que combate o mal, numa luta desigual, sem ambiguidades ou complexos de culpa, charmoso e galanteador sempre pronto a salvar as "donzelas"/"Bond-girls em apuros.Os argumentos obedecem a regras básicas, simples e eficazes, que não interrogam o espectador mas o satisfazem pela previsibilidade e consistência, dando-lhe disponibilidade para se deleitar com explosões,lutas e preseguições (com os mais variados veículos motorizados) e demonstrações de "glamour" em localizações paradisiacas e sofisticadas, tudo isto condimentado pessoas bonitas e atraentes.
Assinalando os 100 anos do nascimento de Ian Fleming e os 50 anos da 1ª edição de Dr No (1958) , primeiro romance a ser adaptado ao cinema a Royal Mail lança em 2008 uma edição filatélica comemorativa onde se apresentam as capas de alguns dos romances icónicos do autor
Ian Fleming (1908-1964) , oriundo de uma familia abastada de Londres, estudou em Eton e no Real Colégio Militar em Sandhurst.Seu pai Valentine Fleming era membro do parlamento e foi morto, em 1917, na Frente Oeste da 1ª Guerra Mundial.
Teve várias experiências profissionais, foi jornalista e consultor financeiro, mas foi em 1939, ao ser recrutado para assistente pessoal do Diretor da Inteligência Naval ,que se começou a desenhar o futuro de Ian.
Nos primeiros anos da guerra Fleming foi adquirindo protagonismo junto do Almirante John Godfrey, diretor dos Serviços de inteligência naval.Em 1941 foi-lhe atribuida a coordenação da Operação Goldeneye, que visava desenvolver uma rede de recolha de informações em Espanha na eventualidade de invasão pela Alemanha nazi.O plano previa também operações de sabotagem a partir de Gibraltar.
A partir de 1942 foi responsável pela formação de uma unidade de comandos conhecida por Unidade de assalto 30 (30AU) , composta por operacionais especializados na recolha de informações (espiões) que atuavam por trás da linha inimigas recolhendo documentação e informação sensivel.Agiam em vários teatros de operações do Mediterrâneo às costas da Normandia. A sua participação no Raide falhado de Dieppe (tentativa de capturar um codificador Enigma) não manchou a sua reputação.O papel de Fleming na supervisão e distribuição de informação às forças navais foi essencial ao planeamento da operação Overlord sendo considerado de grande relevância estratégica.
Em 1944, na sequencia do sucesso da 30AU, foi constituida uma unidade cuja principal função era identificar, securizar e guardar documentos, pessoas e equipamento capturado nos territórios libertados.A unidade foi designada por Target Force.Fleming fez parte do comité que selecionou os alvos que eram listados nos Livros Negros que eram entregues aos oficiais das unidades operacionais.Uma das descobertas mais relevantes da Força T foi a apropriação do centro de pesquisa sediado no porto de Kiel onde foram desenvolvidos os motores propulsores dos foguetes V2, do Messerschmitt Me 163 e dos submarinos de alta velocidade.
Em maio de 1945 Fleming é desmobilizado das forças armadas e assume o cargo de coordenação dos correspondentes estrangeiros no grupo Sunday Times. O contrato previa 3 meses de férias durante o inverno que ele passava na casa que construira na Jamaica a que chamou Golden Eye.Foi aí que se dedicou a concretizar projeto a que aspirava desde os anos da guerra : escrever romances de espionagem.
Em fevereiro de 1952 inicia a escrita do seu primeiro romance Casino Royal que é publicado em 13 de abril de 1953.Nele conta as proezas do espião do MI6, James Bond, nome de código 007 , com licença para matar.E assim se inicia a construção de um dos personagens de ficção mais emblemáticos e icónicos do século XX.Fleming foi buscar o nome do espião ao de um famoso ornitologista americano especialista em aves das Caraíbas e autor do "Birds of West Indies Guide" que Fleming, ornitologista amador, possuía.
Em Maio de 1941, Ian Fleming, então oficial da marinha britânica, fora encarregado de seguir Dusko Popov, agente duplo de nacionalidade sérvia, a quem o MI6 tinha entregue uma enorme soma de dinheiro para desenvolver a sua atividade de recolha de informações junto pessoas de interesse ligadas ao III Reich, sendo necessario assegurar que os 50 mil dólares – à época uma enorme fortuna, não eram desviado para outros fins .
Popov é apontado como principal fonte inspiradora na criação da personagem de Bond, podendo mesmo dizer-se que em muitos aspetos modelo superou a personagem ficcionada (ver video).
Na época desenvolvia as suas acções de inteligência e recolha de informação em Portugal, mais concretamente no Estoril, então porto seguro para a elite social e financeira europeia, fugida da guerra, e onde se cruzavam, entre o Palace Hotel, o casino e os luxuosos cafés e esplanadas, diplomatas das potências beligerantes, altas patentes politicas e militares e ... espiões de várias latitudes ao ponto de o historiador Douglas Wheeler a ter apelidado de "Spyland".
É neste caldo de conspiração e intriga, tendo como pano de fundo o cenário sofisticado e cosmopolita, um paraíso em tempo de guerra,que contracenam, num jogo de luzes e sombras, os protagonistas de um romance de espionagem, ainda por escrever, e que são nada mais nada menos que o "criador e a criação" do fenómeno popular contemporâneo que dá pelo nome de James Bond.
Dusko figura habitual do casino Estoril apercebe-se da "sombra" de Fleming e decide afrontá-lo, em jeito de divertimento, apostando numa mesa de bacará todo o dinheiro confiado. A proeza que teve um feliz desenlace,como mais tarde se revela no primeiro livro de Fleming, Casino Royale: o casino era o do Estoril, os penhascos da Bretanha eram em Cascais, e os hotéis Hermitage e Splendide eram os hotéis Palácio e Parque. James Bond afinal era Dusko Popov, que pouco tempo depois se tornaria ainda num agente triplo, ao serviço do FBI; J. Edgar Hoover ignorou os seus avisos sobre o interesse dos japoneses em Pearl Harbor.Terá também informado o Fuhrer do desembarque eminente nas costas da Normandia, também sem sucesso.
A vida e proezas deste 007 de "carne e osso" está rigorosamente documentada em " Na toca do lobo" de Larry Loftis (2017)