"Waterloo não é uma batalha; é a mudança de aspecto do Universo."

"Waterloo foi o gonzo do século dezanove. Era necessária a desaparição do grande homem para a chegada do grande século, e dela se encarregou alguém a quem se não replica. O pânico dos heróis explica-se. A batalha de Waterloo foi mais do que uma nuvem, foi um meteoro. Foi a passagem de Deus."   

                                                                                     Vitor Hugo - Les miserables

Os protagonistas

A batalha de Waterloo, ocorrida em 18 junho 1815, foi o culminar do governo dos 100 dias (Cent Jours) - período que compreende o regresso de Napoleão do exilio na ilha de Elba e a restauração do reinado de Luis XVIII como rei de França.Foi a última e decisiva batalha da campanha de Waterloo que teve inicio em 15 junho e que envolveu várias batalhas e escaramuças preparatórias do confronto final

As duas facções em confronto : o exercito imperial de Napoleão - Armée du Nord e as forças da sétima coligação (Russia/Prussia/Reino Unido/Reino Unido da Holanda/Reino de Hanover/Ducado de Nassau/Ducado de Brunswick)  - O exercito multinacional liderado por Wellington e o exercito Prussiano liderado pelo marechal Von Blucher.

É um dos momentos decisivos da história da Europa ao qual se seguiu um periodo de 40 anos de paz e prosperidade (conhecido por Pax Britannica) com significativas mudanças geopolíticas, emergência de novas potências e correlações de forças em equilibrio que se manteve durante o séc. XIX e que a historiografia denominou por Concerto da Europa

Vitor Hugo com a sua mestria resume dois protagonistas em confronto :

" Napoleão e Wellington. Não eram dois inimigos eram dois caracteres opostos. Deus, que se apraz com as antiteses, nunca produziu mais frisante contraste, ou confronto mais extraordinário. De um lado a exactidão, a previsão, a geometria, a prudência, a retirada segura, as reservas poupadas, um inalterável sangue-frio, um método imperturbável que se aproveita do terreno, a táctica que equilibra os batalhões, a carnificina alinhada a cordão, a guerra dirigida de relógio na mão, coisa alguma entregue voluntariamente ao acaso, a velha coragem clássica e a correcção absoluta; do outro a intuição, a predição, a excentricidade militar, o instinto sobrenatural, a flamejante certeza da vista, o não sei quê, que olha como a águia e fere como o raio, uma arte prodígio numa impetuosidade desdenhosa, todos os mistérios de uma alma profunda, a associação com o destino; o rio, a planície, a floresta e a colina empregados, e de certo modo obrigados a obedecer, o déspota tiranizando até o campo de batalha; a fé numa estrela de envolta com a ciência estratégica, engrandecendo-a. Wellington era o Bareme da guerra. Napoleão o seu Miguel Ângelo; e desta vez o génio foi vencido pelo cálculo."

Napoleão Bonaparte

Regressado do exílio na ilha de Elba de onde escapou em 28 fevereiro 1815, a bordo do brigue Inconstant, desembarca em França 2 dias depois no Golfe - Juan.A 7 de março quando se dirigia para Paris foi interceptado pelo 5º regimento comandado pelo marechal Ney (antigo oficial do exercito imperial e nomeado marechal por Napoleão).Aí regista-se um dos episódios definidores do caracter e espirito de liderança de Bonaparte.Aproximou-se sozinho do regimento e apeou-se do cavalo e dirigiu-se às tropas gritando : "Aqui estou eu!Matem o vosso imperador se desejais!..."Em resposta ouviu em uníssono "Vive l`imperador !".Ney que havia prometido ao monarca de Bourbon (LuisXVIII) que lhe traria Napoleão numa gaiola,beijou-o afetuosamente e aliou-se novamente ao antigo chefe.Tinha assim inicio o governo dos 100 dias que terminou após a derrota em Waterloo com o novo exílio agora na ilha de Santa Helena

Duque de Wellington - Arthur Wellesley

O duque de ferro (Iron Duke) como era popularmente apelidado ou o conquistador do conquistador do mundo como lhe chamou o Czar Alexandre I.Wellington é ainda hoje um dos herois maiores do Reino Unido.Militar com vasta experiência e veterano de 60 batalhas só se defrontou diretamente com Napoleão em Waterloo.

Eximio estratega reconhecido pela suas manobras defensivas conseguindo várias vezes derrotar inimigos em superioridade numérica

Terminada a carreira militar retomou a atividade política tendo sido primeiro ministro por duas vezes.O seu funeral teve honras de estado e foi homenageado por Lord Tennyson na " Ode on the Death of the Duke of Wellington "

Marechal Michel Ney

O "mais bravo dos bravos" , assim o distinguiu Bonaparte elogiando a coragem como liderou a retirada das tropas imperais do solo russo, ficando também conhecido como o "último francês em solo russo".Sem ascendência nobre alistou-se no Regimento de Hussardos em 1787.Demonstrou o seu valor durante as guerras revolucionárias ascendendo a postos normalmente ocupados pela aristocracia, sendo várias vezes ferido e preso pelo inimigo.

"Le Rougeaud" (o rosado), como lhe chamavam os seus homens, inúmeras vezes demonstrou a sua competência e bravura ao lado de Napoleão.Após a derrota em Waterloo, foi preso, julgado e condenado à morte por pelotão de fuzilamento.Como durante a sua vida encarou a morte da mesma maneira que enfrentou os seus inimigos, sem venda e dando a ordem de fogo ao pelotão (Execução do marechal Ney -J.Leon Gerome)

Estas foram as suas últimas palavras : "Soldados, quando eu der a ordem de fogo, disparem diretamente ao meu coração!Esperem pela ordem, será a última que vos dou!Protesto contra a minha condenação.Combati centenas batalhas pela França, nunca contra ela...Soldados, fogo ! 

Principe Wahlstatt - Von Blucher

"Marechal avançado" era com era conhecido entre os seus homens e que ilustrava o seu impeto indomável e ferocidade no campo de batalha.Os seus pares reconheciam que Blucher definia o modo de guerra Prussiano.

Veterano de 74 anos já estava retirado quando Napoleão recupera o poder em França, obrigando-o a regressar às fileiras pois a sua ferocidade e experiencia eram valores preciosos para as forças da coligação.Já por diversas vezes havia enfrentado as forças imperiais sendo um dos pontos fulcrais a vitória obtida na Batalha das Nações em Leipzig contra Bonaparte que foi o inicio da derrocada do império Francês.

Mas foi na campanha de Waterloo que a sua bravura e tenacidade conheceram o seu zenite.Na batalha preparatória de Ligny (16 junho) sofre uma pesada derrota obrigando a retirada para norte.Blucher ficou encarcerado debaixo da sua montada durante 2 horas.Ferido e exausto,lavou as suas feridas com compressas de ruibarbo e aguardente e retomou a vanguarda do seu exercito e impelindo-o, por terrenos sinuosos cobertos de lama.Ao fim de  2 penosos dias,está de regresso ao campo de batalha, conforme havia prometido a Wellington.Os reforços do exercito Prussiano foram decisivos na vitória final em Waterloo.

Guilherme II Principe de Orange-Nassau

Filho primogénito de Guilherme I rei do Países Baixos.Em 1794 com 2 anos de idade, a sua família fugiu para o Reino Unido após a invasão dos Países Baixos pelas tropas francesas.Aí passou toda a sua infância e adolescência tendo entrado para o exercito britânico com 19 anos.Foi ajudante de campo de Wellington durante a guerra peninsular.Em 1814 era o oficial mais graduado das tropas britânicas estacionadas nos Países Baixos.Quando Napoleão regressou de Elba ocupava o posto de general, mas cedeu a sua posição de liderança a Wellington.

Na batalha preparatória de Quatre Bras (16 junho) fez a sua estreia em combate comandando o 1º Corpo das forças da coligação.As forças do 1º corpo entraram em combate com as forças do flanco esquerdo do exercito imperial comandadas por Ney Com esta manobra de tomada da encruzilhada em Quatre Bras Napoleão tentava com o seu génio estratégico separar os dois exercitos aliados enfraquecendo oseu poderio.Embora a vitória seja atribuída às forças aliadas, este confronto impediu a ajuda ao exercito Prussiano na Batalha de Ligny onde Blucher sofreu uma pesada derrota, alcançando-se o objectivo principal de Napoleão.Na sua segunda experiencia de combate na Batalha de Waterloo foi ferido sem gravidade.

Em 7 outubro de 1840 tornou-se O rei Guilherme II dos Paises Baixos após o seu pai Guilherme I ter abdicado do trono

A BATALHA

Quarenta e sete anos depois da batalha Vitor Hugo publica a sua obra prima "Os miseráveis" .Na segunda parte dedica um livro (assim dividiu a obra) inteiro com 19 capítulos à batalha decisiva da história da europa.No site do National Army Museum encontramos extensa documentação e iconografia da batalha que recomendo efusivamente.

Aqui transcrevo alguns dos mais impressivos e geniais parágrafos que ilustram de forma única o horror  da catástrofe em capítulos e a humanidade dos protagonistas ilustres e anónimos fotogramas escritos que rivalizam e suplantam os registos pictóricos da época.A esse propósito Vitor Hugo comenta as dificuldades e limitações do pintor de batalhas :

" Para pintar batalhas é necessário um pintor que saiba formar caos com o pincel; é melhor Rembrandt que Van-Der-Meulen. Este exacto ao meio-dia, às três horas mente. Engana a geometria; só o furacão é verdadeiro, e é isto o que dá a Folard direito para contradizer Polibio. Acrescentemos que há sempre uma ocasião em que a batalha degenera em combate, se singulariza e espalha em mil factos, que formam cada um de per si uma circunstância, e que, para nos servirmos da expressão do próprio Napoleão, «mais pertencem à biografia dos regimentos do que à história do exército». Neste caso, o historiador tem obrigação evidente de ser resumido, porque não pode apanhar senão os contornos principais da luta, e não é dado a nenhum, por mais consciencioso que seja, fixar absolutamente a forma desta nuvem terrível, chamada uma batalha."

Assim explica Vitor Hugo o teatro de operações :

"Quem quiser fazer uma ideia clara da batalha de Waterloo, não tem mais do que imaginar um A maiúsculo deitado no chão. A perna esquerda do A é a estrada de Nivelles, a direita é a de Genappe e a corda do A, o carreiro Ohain a Braine-l’Alleud. O cimo do A é o Mont-Saint-Jean, onde está Wellington; a extremidade inferior do lado esquerdo, Hougomont, onde está Reille com Jerónimo Bonaparte; a outra extremidade inferior é a Belle Alliance, onde está Napoleão. Um pouco abaixo do ponto em que a corda do A encontra e corta a perna direita, fica a Haie-Sainte. No meio dessa corda é o ponto onde se disse a palavra final da batalha e onde se colocou o leão, símbolo involuntário do supremo heroísmo da guarda imperial. O triângulo compreendido entre o cimo, as duas pernas e a corda do A é a planura do Mont-Saint-Jean em cuja disputa consistiu toda a batalha. As alas dos dois exércitos estendem-se à direita e à esquerda das duas estradas de Genappe e de Nivelles, fazendo Erlon frente a Picton e Reille a Hill. Por trás da extremidade superior do A, isto é, por trás da planura do Mont-Saint-Jean, fica a floresta de Soignes. Quanto à planície em si, represente-se uma vas􀆟dão de terreno ondulante, cujas eminências se vão imediatamente sucedendo umas às outras, dominando esta aquela e esta a seguinte. As ondulações vão subindo para o Mont-Saint-Jean, até terminar na floresta."

Inicio da batalha - Tomada de Hougmont

"Hougomont foi um lugar fúnebre; o começo do obstáculo, a primeira resistência que em Waterloo se opôs ao grande lenhador da Europa, que se chamava Napoleão; o primeiro nó que ele encontrou sob o machado..."

" As quatro companhias das guardas de Cooke, resistiram ali durante sete horas, ao encarniçamento de um exército. Hougomont, visto no mapa, em plano geométrico, compreendendo os edi􀄰cios e tapadas, apresenta uma espécie de rectângulo irregular, no qual fosse entalhado um dos ângulos. É neste ângulo que fica a porta meridional, guardada pelo muro, que a fuzila à queima-roupa. Hougomont tem duas portas; a meridional, que é a do solar, e a setentrional, que é a do casal Napoleão mandou contra Hougomont seu irmão Jerónimo; as divisões Guileminot, Foy e Bachelu, ali se encontraram; quase todo o corpo de Reille, ali foi empregado e aniquilado; os esforços das balas de Kellerman foram inúteis sobre o heróico muro. Não foi demais a brigada Bouduin para forçar Hougomont pelo norte; do sul, a brigada Soye pôde apenas fazer-lhe mossa, sem consegui-lo.

"Bauduin morto, Foy ferido, o incêndio, a carnificina, a mortandade, um rio de sangue inglês, de sangue alemão e de sangue francês, furiosamente misturados, um poço atulhado de cadáveres, o regimento de Nassau e o de Brunswick destruídos, Duplat morto, Blackman morto, os guardas ingleses mu􀆟lados, vinte batalhões franceses, além dos quarenta do corpo de Reille, dizimados, três mil homens mortos naquela mansão solitária de Hougomont, espa􀆡eirados, acu􀆟lados, degolados, fuzilados, queimados; e tudo para um aldeão dizer hoje a um viajante: Senhor, dê-me três francos que, se quiser, eu conto-lhe como foi esta embrulhada de Waterloo!"

"Aí se entrincheiraram os ingleses e penetraram os franceses, os quais não puderam, contudo, sustentar-se naquela posição. Ao lado da capela, sobressai em ruínas um lanço do solar, único fragmento que resta da mansão de Hougomont. O castelo serviu de reduto, a capela, de fortim. Naquele dia, cada qual procurava exterminar o seu adversário. Os franceses, espingardeados de todos os lados, por trás das muralhas, de cima dos celeiros, do fundo das adegas, por todas as janelas e postigos, por todas as fendas das pedras, trouxeram faxina, e lançaram o fogo às paredes e aos homens à metralha replicaram com o incêndio."

"Quando se disparou o primeiro tiro de peça, o general inglês Carville olhou o relógio e viu que eram onze horas e trinta e cinco minutos. Travada a acção com fúria, com mais talvez do que o imperador quisera, sobre Hougomont, pela ala esquerda francesa, Napoleão atacou o centro, precipitando a brigada de Quiot sobre a Haie-Sainte, e Ney moveu a ala direita contra a ala esquerda inglesa, que se apoiava em Papelotte. O ataque de Hougomont tinha alguma coisa de simulado; o plano era atrair ali Wellington, fazendo-o inclinar para a esquerda. Este plano teria sortido efeito, se as quatro companhias de guardas ingleses e os bravos belgas da divisão de Perponcher não tivessem guardado a sua posição a pé firme, e se Wellington, em vez de se lhes reunir em massa, se não tivera limitado a mandar-lhes um reforço de outras quatro companhias de guardas e um batalhão de Brunswick."

"Após a tomada de Haie-Sainte, a batalha começou a vacilar. Aquele dia tem um intervalo escuro, desde o meio-dia até às quatro horas; o meio-dia da batalha é quase indistinto e participa do sombrio da refrega. A luz crepuscular do combate, viam-se mil vultos flutuando em nuvens de fumo, uma como miragem vertiginosa, o trem de guerra de então, desconhecido hoje, as barretinas felpudas, os boldriés e as pastas dos hussardos, as correias cruzadas, as cartucheiras, os dólmans, as botas vermelhas de mil dobras, os pesados shakos engrinaldados de torçal, a infantaria quase negra de Brunswick misturada com a infantaria escarlate de Inglaterra, os soldados ingleses com dragonas feitas de grandes borrainas brancas circulares, a cavalaria ligeira hanoveriana com os seus capacetes de couro oblongos de barbicachos de cobre e penachos de cabelo vermelho; os escoceses de joelhos nus, as grandes polainas dos nossos granadeiros; quadros e não linhas estratégicas; o que é necessário a Salvador Rosa e não a Gribeauval. Uma batalha tem sempre certa semelhança com uma tempestade. Quid obscutum, quid divinum"

Assalto dos Hussardos/Cavalaria Francesa

"Eram três mil e quinhentos gigantes montados em cavalos colossos, que, formados em linha, ocupavam um quarto de légua de terreno; eram vinte e seis esquadrões, protegidos pela retaguarda, pela divisão de Lefebvre-Desnoueties; cento e seis gendarmes escolhidos, mil cento e oitenta e sete caçadores e oitocentos e oitenta lanceiros. Traziam capacetes sem penacho e couraças de ferro batido, com pistolas de arção nos coldres e o comprido sabre-espada"

Vieram em coluna cerrada e com uma das baterias ao lado e a outra no centro, formar-se em duas filas, entre as estradas de Genappe e a de Frischemont, e tomar o seu lugar para a batalha nessa valente segunda linha, tão sabiamente composta por Napoleão, a qual, para assim dizer, tinha duas alas de ferro, porque na extremidade esquerda ficavam-lhe os couraceiros de Kellermann e na extremidade direita os couraceiros de Milhaud. Recebida a ordem do imperador, que lhes foi levada pelo ajudante de campo Bernard, Ney desembainhou a espada e pôs-se à frente dos enormes esquadrões, que levantaram campo. Toda aquela cavalaria, de sabres em punho, estandartes e trombetas ao vento, formada em duas colunas, desceu com movimento uniforme, parecendo um só homem, e com a exactidão de um aríete aferindo uma brecha, a colina de Belle Alliance, entranhou-se no terrível vale, onde já tantos homens haviam caído, e desapareceu por entre o fumo, saindo em seguida daquela sombra para reaparecer do outro lado, ainda cerrada e compacta, subindo a galope, por entre um chuveiro de granadas, que lhe rebentavam por cima, a medonha rampa de lama, que conduzia ao alto do Mont- SaintJean. Eles subiam, graves, ameaçadores, imperturbáveis; nos intervalos da mosquetaria e da artilharia, ouvia-se aquele mover de pé~colossal. Eram duas divisões, formando duas colunas, à direita, a divisão de Wathier, à esquerda; a divisão de Delord. Quem via de longe, pareciam-lhe duas imensas cobras de aço, estendendo-se para o alto do Mont-Saint-Jean. Aqueles homens atravessaram o campo de batalha como um prodígio. Desde a tomada do grande reduto de Moskowa pela grossa cavalaria, não se tornara a ver coisa semelhante; faltava ali Murat, mas estava Ney. Parecia que aquela massa se tinha convertido num monstro com uma só alma. Por entre uma nuvem de fumo, rasgada aqui e além, viam-se os esquadrões estendendo-se, ondulando, como os anéis de um pólipo. Era uma confusão de capacetes, gritos e sabres, de saltos impetuosos dos cavalos, jogando de garupa, ao estrondo do canhão e ao tanger das trombetas, um tumulto disciplinado, mas terrível, e por cima de tudo isto as couraças, como as escamas sobre a hidra.

"Os soldados ingleses, porém, não viam os couraceiros, nem os couraceiros viam os soldados ingleses. Estes ouviam subir aquela maré de homens; ouviam cada vez mais dis􀆟nto o ruído de três mil cavalos a trote largo, o bater alternado e simétrico das ferraduras nas pedras da estrada, o atrito das couraças, o 􀆟nir dos sabres e um como hálito feroz. Após uma pausa terrível, em que tudo era silêncio, apareceu subitamente em cima da esplanada uma comprida fileira de braços erguidos brandindo sabres, uma mul􀆟dão de capacetes, trombetas e estandartes, e três mil cabeças de homens de bigode russo, gritando: — Viva o imperador! Parecia que tremia a terra, ao desembocar na planície toda aquela cavalaria. De súbito — trágico sucesso! — do meio da vanguarda da coluna dos couraceiros levantou-se um clamor terrível. Ao chegarem ao alto da encosta, 􀆟nham dado de chofre com um fosso, uma vala que se estendia entre eles e os ingleses. Era a azinhaga de Ohain."

"Ao mesmo tempo que os couraceiros deram com o barranco, depararam diante de si com a bateria oculta, que os fulminava à queima-roupa com as suas sessenta peças, e à qual o intrépido general Delord fez a saudação militar. Ao fogo da bateria juntava-se o dos quadrados. A artilharia volante inglesa entrara toda a galope para dentro dos quadrados, sem que os couraceiros tivessem um momento de espera. O desastre da azinhaga dizimaraos, mas não lhes fizera perder o ânimo. Eram desses homens que crescem no coração, diminuindo no número. Só a coluna Wathier é que tinha sofrido acidente; a de Delord chegara inteira por Ney a ter feito ladear à esquerda, como se pressentisse a emboscada. Os couraceiros arrojaram-se contra os quadrados ingleses, galopando à rédea solta, de sabre traçado nos dentes e pistolas nas mãos. Tal foi o ataque. Ocasiões há nas batalhas em que a alma endurece o homem, a ponto de o mudar de soldado em estátua e de massa de carne em massa de granito. Os batalhões ingleses, assaltados desvairadamente, não se moveram. Deu-se então uma coisa horrorosa. As faces dos quadrados ingleses foram atacadas todas ao mesmo tempo e envolvidas num como rodopio frenético. Aquela fria infantaria ficou impassível. A primeira fileira recebia-os de joelho em terra nas pontas das baionetas, a segunda espingardeava-os, e por trás desta os artilheiros carregavam as peças, abria-se a frente do quadrado para deixar passar uma erupção de metralha e tornava a fechar-se. Os couraceiros respondiam esmagando. Os seus grandes cavalos empinavam-se, saltavam as fileiras, pulavam por cima das baionetas e caíam como gigantes no meio daquelas quatro paredes vivas. As balas faziam abertas nos couraceiros, os couraceiros abriam brechas nos quadrados. Desapareciam filas de homens esmigalhadas pelos pés dos cavalos, enterravam-se as baionetas no ventre daqueles centauros. Era uma deformidade de feridas, que talvez nunca se visse em parte nenhuma. Os quadrados dizimados por aquela cavalaria enfurecida estreitavam-se sem demora e con􀆟nuavam a fazer explosão no meio dos assaltantes, com inesgotável metralha. Era monstruoso o aspecto daquele combate. Os quadrados não eram batalhões, eram crateras; os couraceiros uma tempestade, não uma cavalaria. Era cada quadrado um vulcão atacado por uma nuvem; a lava a combater com o raio..."

" Aquilo não foi uma refrega, foi uma sombra, uma fúria, um arrebatamento vertiginoso de armas e coragens, um furacão de espadas-relâmpagos. Dentro de um instante, os mil e quatrocentos dragões-guardas ficaram reduzidos a oitocentos e o seu tenente Fuller caiu morto. Acudiu Ney com os lanceiros e os caçadores de Lefebvre-Desnouettes, e a planura do Mont-Saint-Jean foi tomada, retomada e tornada a tomar; os couraceiros deixando a cavalaria para se voltarem contra a infantaria, os quadrados resistindo sempre; era uma barafunda formidável, melhor diremos assim, junta num só grupo, sem que uns se desenvencilhassem dos outros. Nesta refrega, que durou duas horas, durante as quais se deram doze assaltos, mataram quatro cavalos a Ney e metade dos couraceiros ficou na planura..."

Ofensiva de Blucher - tomada de Plancenoit

"... Como a sua vanguarda era pequena e fraca, teve de esperar o corpo do exército, porque tinha ordem de se concentrar antes de entrar em linha; às cinco horas, porém, vendo Blucher o perigo em que estava Wellington, ordenou a Bulow que atacasse, proferindo esta notável frase: «É preciso dar ar ao exército inglês». Daí a pouco, formavam-se as divisões de Losthin, de Híller, Hacke e Ryssel, em frente do corpo de Lobau, a cavalaria do príncipe Guilherme da Prussia desembocava do bosque de Paris, Plancenoit ardia em chamas e as balas prussianas principiavam de chover até às fileiras da guarda de reserva colocada por trás de Napoleão. (...) a irrupção de um terceiro exército, a deslocação da batalha, oitenta e seis bocas de fogo troando de repente, a chegada súbita de Pirch 1.º com Bulow, a cavalaria de Zieten comandada por Blucher em pessoa, os franceses rechaçados, Marcognet varrido da azinhaga de Ohain, Duruti e desalojado de Papelote, retirada de Donzelot e Quiot, Lobau apanhado de lado, nova batalha travada com os nossos desmantelados regimentos ao cair da noite, a linha inglesa tomando toda outra vez a ofensiva e impelida para a frente, a rotura gigantesca feita no exército francês, a metralha inglesa e a metralha prussiana auxiliando-se mutuamente, o extermínio, a destruição pela frente e pelo lado, e a guarda a entrar em linha no meio deste destroço formidável. Ao conhecer que ia morrer, a guarda gritou: «Viva o imperador!»

Assalto final da Guarda Imperial

"... Naquele desenlace, cada batalhão era comandado por um general. Ali se acharam Friant, Michel, Roguet, Harllet, Mallet, Poret de Morvan. Quando as barretinas dos granadeiros da guarda com a sua larga chapa da águia apareceram no meio da neblina da refrega, simétricos, alinhados, tranquilos, o inimigo sentiu-se dominado de respeito pela França, julgando ver entrar no campo da batalha vinte vitórias de asas abertas, e os que eram vencedores recuaram, julgando-se vencidos. Wellington, porém, gritou-lhes: — A pé, guardas, e pontaria certa! O regimento vermelho dos guardas ingleses, deitado por trás das sebes, levantou-se, a bandeira tricolor, que tremulava em volta das nossas águias, foi crivada por uma nuvem de metralha, e os combatentes arrojaram-se uns contra os outros principiando então a suprema carnificina. A guarda imperial sentiu nas sombras o exército a fugir, sentiu o vasto abalo da derrota, ouviu o «salve-se quem puder!» que substituíra o «viva o imperador!», mas se bem que todos fugissem, ela continuou a avançar, cada vez mais dizimada pela morte, a cada passo que dava. Não houve ali irresolutos nem timidos. Naquele regimento, tão heróico era o soldado como o general. Nem um só homem fugiu ao suicídio. Ney, no meio daquela tormenta, oferecia-se aos golpes de todos, desvairado e grande em toda a sua altura de homem que aceita voluntário a morte. Ali lhe mataram o quinto cavalo. A escorrer em suor, com a chama nos olhos, a escuma nos lábios, a farda desabotoada, uma das dragonas meia cortada por uma cu􀆟lada de um guarda a cavalo, a sua chapa com a grande águia amolgada por uma bala, banhado em sangue, cheio de lama, magnífico, com uma espada quebrada na mão, dizia: — Vinde ver como um marechal de França morre no campo da batalha! Porém, foi debalde; ele não morreu. Ney andava desvairado e indignado, fazendo esta pergunta a Drouet de Erlon: — Então tu não encontras quem te mate? E gritando no meio daquela artilharia a esmagar um punhado de homens: — Oh, quisera que todas estas balas inglesas me entrassem na barriga, mas para mim não há nada! Estava reservado para as balas francesas, infeliz!"

Lúgubre foi a derrota na retaguarda daqueles intrépidos soldados. O exército retrocedeu rapidamente de todos os lados ao mesmo tempo, de Hougomont, de Haie- Sainte, de Papelo􀆩e, de Plancenoit, e ao grito de: «Traição!» seguiu-se o grito: «Salve-se quem puder!» Um exército em debandada é um degelo. Tudo se curva, se abre, estala, flutua, rola, cai, choca, apressa e precipita. Desagregação inaudita. Ney pede um cavalo emprestado, monta e vai colocar-se no meio da estrada de Bruxelas para fazer parar ingleses e franceses, sem chapéu, nem gravata, nem espada,— tentando reter o exército, chamando-o, insultando-o, agarrando-se a tudo no meio daquela derrota, transbordando: os soldados, porém, fogem-lhe, gritando: — Viva o marechal Ney!

OS COMBATENTES

"...Se no mundo há coisa que aterre, se existe uma realidade que exceda as ficções de um sonho, é decerto isto: viver, ver o Sol, estar em plena posse da força viril, ter a saúde e a alegria, rir com desassombro, correr após uma glória que temos diante de nós e nos incita com o seu deslumbramento, sentir no peito um pulmão que respira, um coração que pulsa, uma vontade que raciocina; falar, esperar, pensar, amar; ter mãe, mulher e filhos, possuir a luz, de súbito, em menos de um minuto, em menos tempo do que o necessário para soltar um grito, resvalar num abismo, cair, rolar, esmagar, ser esmagado; ver espigas de trigo, flores, folhas e ramos, sem poder deitar a mão a nada, sem poder cravar as unhas na aresta do precipício, vendo inútil a espada, sentindo por baixo de si o peso dos homens e por cima o dos cavalos, debater-se em vão com os ossos quebrados por algum choque imprevisto nas trevas, sentir um calcanhar que vos deita os olhos fora, morder com raiva as ferraduras dos cavalos, sufocar, uivar, contorcer-se, sentir-se enterrado e dizer: «Ainda há pouco eu era um vivo!» Porém agora tudo era silêncio naquele lugar nefasto, onde as vítimas de tão lamentoso desastre fizeram ouvir o estertor da sua inconcebível angústia. A azinhaga extravasava de cavalos e cavaleiros, inextricavelmente amontoados, confundidos, emaranhados..."

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