"There is a kind of lazy pleasure in useless and out-of-the-way erudition" - JLBorges Arte,história,ciência e cultura em pequenos rectângulos perfurados
Conflito militar que opôs a aliança composta pelo império Otomano, o reino da Sardenha, a França e o Reino Unido contra a Rússia imperial de Nicolau I entre outubro 1853 e fevereiro 1856.
O direito de acesso das minorias cristãs católicas à Terra Santa ( na posse do otomanos, então em declínio) foi o pretexto para as potências ocidentais impedirem a expansão para sul do Império Russo declaradamente Cristão Ortodoxo.
Várias circunstâncias tornaram este conflito relevante para a história universal mas é talvez o mais dilacerante hino à incompetência militar e diplomática que redundou numa carnificina de cerca de 750.000 mortos, mais de metade devido a doenças.
Foi palco inaugural daquilo a que hoje se denomina de guerra moderna com recurso a várias tecnologias inovadoras como o telégrafo, o caminho de ferro, o bombardeamento naval entre outros.Mas foi também testemunha de atos de bravura inútil, mais próprios dos conflitos medievais como "A carga da Brigada Ligeira" imortalizada no poema de Tennyson.
O tensão teve inicio em julho de 1853 com a ocupação russa dos principados do Danúbio (Moldovia e Wallachia) , então protetorados do império Otomano.O confronto de forças ocorreu em vários palcos , do Báltico ao Pacífico , mas centrou-se no Mar Negro, pricipalmente na Península da Crimeia onde ocorreram as batalhas decisivas e as mais sangrentas.
Para aprofundar o conhecimento e deliciar-se com a iconografia disponível registo o link para o National Army Musem
Com o objetivo de tomar a base naval russa de Sevastopol um corpo expedicionário, composto por forças anglo-francesas (comandadas por Maréchal Jacques Leroy de Saint-Arnaud e Lord Raglan) e egipcias ( Major General Suleiman Pasha Al Arnauti), desembarcou na Península da Crimeia (Baia de Kalamita) a 45 km da base.As forças russas comandadas por Menshikov posicionaram-se defensivamente na elevação do terreno a sul do rio Alma.
A ofensiva culminou com a retirada caótica das tropas russas deixando caminho aberto até Sevastopol.Os soldados franceses capturaram, numa elevação do terreno denominada por Telegraph hill, a carruagem do Principe Menshikov contendo uma cozinha de campo, cartas do Czar, novelas francesas pornográficas e roupa interior feminina...
Em comemoração da vitória os franceses deram o nome de Alma a uma das pontes que ligam as margens do Sena na cidade de Paris
Após a vitória em Alma os altos comandos das forças aliadas ( Marechal Saint-Arnaud e Lord FitzRoy Somerset 1º Barão de Raglan ) hesitaram em tomar diretamente a fortaleza de Sevastopol ou procederem ao seu cerco. A opção do cerco permitiu o reagrupamento e organização das defesas da cidade.Percebendo as fragilidades das linhas anglo-francesas no seu extemo sul, junto ao porto de Balaclava, Menshikov movimentou as suas forças nessa direção com o objetivo de manter vias de comunicação e abastecimento com o território russo.A ofensiva russa, liderada pelo General Liprandi, começou bem, com as forças russas a tomar ou destruir os redutos aliados dispostos ao longo da estrada de Woronstov , denominada pelos aliados por- Causeway Heights.
A dramática defesa e contra ataque das tropas aliadas ficaram para sempre registadas na história do conflitos armados onde a bravura inexcedivel do 93º regimento de infantaria (Highlands) que formando uma linha impenetrável (" Thin Red Line") repeliu a carga da cavalaria russa.Percebendo a incapacidade de penetração da cavalaria russa, as forças aliadas contra atacaram, apesar da inferioridade numérica e do desnivel do terreno, lançando a Brigada pesada (Heavy brigade) numa carga de cavalaria vitoriosa obrigando a retirada da cavalaria de Liprandi.
Carga da Brigada Ligeira
A mesma Batalha de Balaclava foi testemunha de um dos mais famosos desastres das forças armadas britânicas onde a deficiente comunicação através da cadeia de comando conduziu a Brigada Ligeira a uma chacina inútil na poeira do Vale da Morte.
Na tentativa de evitar que as forças russas se apoderassem das peças de artilharia aliadas, Lord Raglan ordena, através de ordem escrita pelo General Airey, que a Brigada Ligeira as recupere.O capitão Nolan portador da ordem escrita faz uma interpretação errada da mesma,levando Lorde Cardigan a ordenar a carga frontal contra a artilharia russa que também estava disposta nos flancos do vale.
O desastre resultou em 260 baixas humanas e 475 cavalos mortos e a aniquilação da Brigada Ligeira do teatro de operações.
Está tragédia pelo romantismo associado à bravura inútil e desesperada suscitou na opinião pública da época um patriotismo exacerbado a que não é alheia a inspiração inflamada dos poetas da época.
A ode romantica de Lord Tennyson foi o mote que perpetuou o mito da " Charge of the Light Brigade " até aos dias de hoje. Seja no cinema ou na música popular diversas interpretações, mais ou menos rigorosas, ilustram o delírio e a futilidade da guerra
I
Half a league, half a league,
Half a league onward,
All in the valley of Death Rode the six hundred.
“Forward, the Light Brigade!
Charge for the guns!” he said.
Into the valley of Death Rode the six hundred.
II
“Forward, the Light Brigade!”
Was there a man dismayed?
Not though the soldier knew
Someone had blundered.
Theirs not to make reply,
Theirs not to reason why,
Theirs but to do and die.
Into the valley of Death
Rode the six hundred.
III
Cannon to right of them,
Cannon to left of them,
Cannon in front of them
Volleyed and thundered;
Stormed at with shot and shell,
Boldly they rode and well,
Into the jaws of Death,
Into the mouth of hell
Rode the six hundred.
IV
Flashed all their sabres bare,
Flashed as they turned in air
Sabring the gunners there,
Charging an army, while
All the world wondered.
Plunged in the battery-smoke
Right through the line they broke;
Cossack and Russian
Reeled from the sabre stroke
Shattered and sundered.
Then they rode back, but not
Not the six hundred.
V
Cannon to right of them,
Cannon to left of them,
Cannon behind them
Volleyed and thundered;
Stormed at with shot and shell,
While horse and hero fell.
They that had fought so well
Came through the jaws of Death,
Back from the mouth of hell,
All that was left of them,
Left of six hundred.
VI
When can their glory fade?
O the wild charge they made!
All the world wondered.
Honour the charge they made!
Honour the Light Brigade, Noble six hundred!
A ode romantica de Lord Tennyson foi o mote que perpetuou o mito da " Charge of the Light Brigade " até aos dias de hoje. Seja no cinema ou na música popular diversas interpretações, mais ou menos rigorosas, ilustram o delírio e a futilidade da guerra
Em 1912,J. Searle Dawley, dirige a primeira versão cinematográfica (de 15 minutos) da épica carga, inspirando-se no poema de Tennyson.Vinte e quatro anos (1936) depois a Warner Bros produz, ao estilo de Hollywood, uma nova versão dirigida por Michel Curtiz e Errol Flynn como protagonista.
Em 1968, 0s estúdios britânicos Woodfall Films produzem uma versão a cores, dirigida por Tony Richardson com Trevor Howard no papel de Lord Cardigan e Vanessa Redgrave no papel de amante do capitão Nolan (David Hemmings). Apresenta-nos um exercito britânico obsoleto e incapaz e uma clara visão anti-guerra.Os créditos iniciais (e separadores) apresentados por desenhos animados inspirados na revista Punch (muito popular no Sec XIX) por Richard Williams, tinham o papel de explicar o contexto politico e geoestratégico da guerra da Crimeia.Esta inovação à época não foi muito bem recebida pela crítica mas será talvez um dos pontos de destaque desta produção pouco inspirada.
Relançamento 1916 - Cinema mudo
Parte 1
Parte 2
Versão integral
O conflito da Crimeia travou-se em varios cenários e diferentes latitudes desde o Báltico ao Pacífico.Isto deve-se ao facto de os beligerantes serem potencias imperiais com praças em diferentes continentes.
Na tentativa de cortar as linhas de abastecimento à cidade sitiada de Sebastopol as forças Anglo - Francesa lançaram, no inicio de 1855 uma campanha naval no Mar de Azov.Em 12 de maio navios de guerra entram no estreito Kerk (liga o Mar de Azov ao Mar Negro) e destroiem a bateria de defesa costeira na baía de Kamishevaya .Em maio desse ano a histórica cidade portuária de Taganrog, onde nasceu Tchekov, foi submetida a intenso bombardeamento naval destruindo armazens de cereais que seriam enviados para Sebastopol. A tentativa de desembarque de tropas e tomada da cidade foi repelida pelos Cossacos do Don, na Velha Escadaria Depaldo, no centro da cidade.
Guerra Crimeia - Campanha Azov
A longa extensão das linhas Anglo-Francesas condicionava uma grande dispersão das suas tropas tornando-as vulneráveis em vários pontos.O Estado maior das forças russas tendo conhecimento dessas vulnerabilidades, expostas em Balaclava, lançou uma grande ofensiva,tentando romper as linhas Aliadas, ao longo do rio Tchernaya, próximo da localidade de Inkerman.O general Soymonov, à frente da 10ª Divisão atacou com uma formidável força de 42000 homens no total, contra os 2700 homens da 2ª divisão britânica, comandadas pelo Major-General Pennefather, aquartelada em Home Hill.
Apesar da desproporção de forças, as tropas britânicas melhor equipadas, aproveitando a irregularidade do terreno, contra-atacaram conseguindo manter as posições e repelir o ataque russo aproveitando as condições climatéricas adversas.
O intenso e espesso nevoeiro impediu os generais russos de perceber a inferioridade do dispositivo britânico levando Soymonov a hesitar em avançar uma segunda ofensiva, o que permitiu a chegada dos reforços da 4ª divisão britânica do General Cathcart e exercito francês.
Foi uma batalha dura e caótica,o nevoeiro impossibilitava a manutenção contínua da cadeia de comando.Os soldados assumiam muitas vezes a iniciativa e envolviam-se em combates corpo a corpo sem propósito ou organização.É por isso também conhecida pela "Batalha do Soldado"
Ambos os lados sofreram pesadas baixas,incluindo o General Soymonov e Cathcart entre outros oficiais.Apesar da vitória inequivoca das forças aliadas, ficou patente que as expectativas de um rápido e retumbante triunfo aliado não se concretizariam, abrindo caminho para um impasse que culminou no cerco de Sevastopol
Cerco de Sebastopol
A guerra da Crimeia foi uma espécie de ensaio geral dos teatros de guerra do século XX . Aí foram experimentadas pela primeira vez inovadoras estratégias de defesa (ex trincheiras) e tacticas ofensivas envolvendo artilharia terrestre e naval.No entanto, a este imenso poder de fogo e capacidade destrutiva aliavam-se lideranças aristocraticas de duvidosa competência e desastrosa incapacidade de organização do apoio logistico.Desta combinação explosiva resultou uma catástrofe humanitária nunca antes experimentada ou noticiada.Também foi neste conflito que, pela primeira vez, a opinião pública das forças beligerantes teve acesso a relatos vívidos e crús das operações militares enquanto elas decorriam.
William Howard Russell, conhecido como o primeiro correspondente de guerra da história foi enviado pelo jornal "The Times" para testemunhar " in loco" a experiência da guerra e,através dos olhos de um civil, levar essa mesma experiência aos leitores britânicos.As suas crónicas apaixonadas mas objetivas revelando o lado oculto,não glamoroso e cruel, permitiram que o público britânico acompanha-se de perto e em tempo quase real, por via do telégrafo (outra inovação) e assim desenvolvesse consciência critica.
As fotografias de Roger Fenton, embora não retratassem os ferozes combates, ilustravam, as terriveis condições da retaguarda e do sofrimento experimentado pelos combatentes.A visibilidade das guerras anteriores dependia apenas dos relatos fabulosos dos lideres militares e das ilustrações e pinturas míticas executadas a partir desses relatos.
As crónicas de Russell tiveram um impacto social e politico decisivo levando à tomada de medidas que tentaram minimizar a tragédia em curso.A mobilização da sociedade civil britânica permitiu a construção, em tempo recorde, de caminho de ferro entre o porto de Balaclava e Sebastopol ("Grand Crimean Central Railway") que permitiu o abastecimento de munições e mantimentos às forças estacionadas em redor da cidade.Montaram também o primeiro comboio hospital que evacuava os feridos da zona de combate.Os relatos realistas e dramáticos sensibilizaram duas personagens que mudaram radicalmente os cuidados sanitários prestados não só nos teatros de guerra mas também na organização sanitária em tempo de paz foram elas Florence Nightingale e Mary Seacole
Em 1851 o jovem Tolstoi alista-se no exercito.Em 1854 é destacado para Sebastopol como oficial de artilharia participando na defesa da cidade contra a aliança Anglo-Francesa.A dura e traumática vivência do cerco é magistralmente relatada " in loco", nesta obra iniciatica, onde num registo hibrído entre o relato jornalístico, a análise psicológica e a crítica moral, mergulham o leitor numa experiência atroz, pessoal e coletiva.As virtudes e vilezas humanas que vagueiam entre as trincheiras e o " boulevard"; a consciência "sonâmbula" dos intervenientes indiferente ao odor a morte e ao brilho desolador "estrelas"; a indistinta natureza do mal revelada na patética ambição de glória
A Howard Russell respondem o russos com Tolstoi o "correspondente literário" e os seus " Sebastopol sketches", que, em três andamentos, consegue a proeza de nos confrontar, na sua crueza e complexidade, com as diferentes paisagens desoladoras da barbárie.Deixo abaixo alguns excertos das três "short-stories" cujos títulos remetem para estrutura descritiva de um diário.
No primeiro andamento - "Sebastopol mês dezembro (1854)", usando a segunda pessoa, Tolstoi leva-nos num imenso "travelling" cinematográfico que ilustra a chegada ao porto de Sebastopol, unica forma de entrar na cidade sitiada, suscitando um crescente desconforto no interlecutor/leitor.
" ... Em Siévernaia, as ocupações diurnas pouco a pouco começam a substituir a tranquilidade da noite: em algum lugar, faz-se a troca das sentinelas em meio ao tilintar de armas; em outro, um médico se apressa em direção ao hospital; em algum recanto, um soldadinho se arrasta para fora de seu abrigo na terra, lava em água meio congelada o rosto bronzeado, volta-se para o Oriente purpúreo e, com um rápido sinal da cruz, inicia sua prece a Deus; em outra parte, uma alta e pesada madjara atrelada a camelos arrasta-se, rangente, em direção ao cemitério para onde leva cadáveres ensanguentados, que se amontoam até quase a sua borda… Você se aproxima do porto — e um odor particular de carvão de pedra, esterco, umidade e carne de vaca o invade. Milhares de objetos, dos mais variados — lenha, carne, gado auroque, farinha, sucatas de ferro etc. — estendem-se aos montes em torno do cais; soldados de diversos regimentos com mochilas e armas e mesmo sem mochilas nem armas aglomeram-se por aqui, fumam, injuriam-se, transportam cargas para um vapor, que, fumegando, encontra-se ancorado no desembarcadouro; botes a remo, repletos de todo tipo de gente — soldados, marinheiros, comerciantes, mulheres — atracam e desatracam do cais. (...) No cais, movem-se ruidosas multidões de soldados em veste cinza, marinheiros em negro e mulheres em estampas multicores. As velhas camponesas vendem pequenos pães, os mujiques russos com seus samovares gritam: “Sbíten quente!” e aqui mesmo, sobre os primeiros degraus, amontoam-se balas de canhão, bombas, metralhadoras, canhões de diversos calibres. Um pouco adiante há uma grande praça juncada de enormes vigas, peças de canhão, soldados adormecidos; há cavalos, carroças, instrumentos e grandes caixas verdes, sarilhos para fuzis de infantaria; soldados, marujos, oficiais, mulheres, crianças, comerciantes circulam pra lá e pra cá; passam carroças com feno, com sacos, com tonéis; cruzam um cossaco e um oficial a cavalo, um general em carruagem. À direita há uma rua obstruída por uma barricada com vãos guarnecidos por pequenos canhões, e ali por perto se encontra um marinheiro fumando cachimbo. À esquerda há uma bela casa com cifras romanas no frontão, sob o qual se abrigam soldados e civis ensanguentados — por toda parte você vê rastros lamentáveis do campo de batalha. Sua primeira impressão é certamente a mais desagradável: uma estranha mistura das vidas do campo de batalha e da cidade, de uma bela cidade e de um nojento bivaque, uma mistura que não apenas não possui nada de belo, mas que dá a ideia de uma terrível desordem; (...) Você entra no grande salão da Assembleia. Assim que abre a porta, é fulminado pela visão e pelo odor de quarenta ou cinquenta amputados e feridos graves, alguns sobre macas, a maior parte estendidos pelo chão. Não se renda à sensação que o paralisa à entrada da sala — essa horrível sensação. Siga adiante, não se envergonhe de ter vindo ver os sofredores, não se envergonhe de se aproximar e falar com eles: os infelizes amam ver rostos solidários, amam narrar seus sofrimentos e escutar palavras de afeto e interesse. Você passa entre os leitos e procura uma fisionomia menos rude e sofrida antes de se decidir a se aproximar e conversar..."
"... Agora, se você tem nervos fortes, atravesse a porta à esquerda: é naquele outro cômodo que se fazem os curativos e as operações. Você verá os médicos com os braços ensanguentados até os cotovelos, as fisionomias pálidas e sombrias, debruçados sobre uma maca, onde, com os olhos abertos e falando como em delírio palavras sem sentido, às vezes simples e tocantes, está estendido um ferido sob o efeito de clorofórmio. Os médicos estão ocupados com o ato repulsivo, mas benéfico da amputação. Você verá a faca curva e afiada penetrar na carne branca e saudável; verá com que grito terrível e dilacerado, com que imprecações o ferido súbito retoma consciência; verá o oficial médico atirar a um canto o braço cortado; verá como, no mesmo cômodo, outro ferido sobre uma maca assiste a operação do companheiro, crispa-se e geme não tanto por dor física, quanto pelo sofrimento moral da espera — verá espetáculos terríveis que lhe revolverão a alma; verá a guerra não pela sua aparência regular, sedutora e brilhante, acompanhada por música e tambores, com bandeiras desfraldadas e generais que corcoveiam com seus cavalos, mas sim a guerra em sua verdadeira expressão — em sangue, em sofrimentos, em morte…"
Segundo andamento - Sebastopol em maio (1855) , a cidade é a face do desepero, a destruição e a ferocidade dos combates penetram na alma dos sitiados, a sensatez esfuma-se expondo os abismos humanos
"Já haviam se passado seis meses desde que o primeiro projétil detonado pelos bastiões de Sebastopol silvara e explodira na terra das fortificações inimigas e, desde então, milhares de bombas, obuses e balas não cessavam de voar dos bastiões às trincheiras e das trincheiras aos bastiões e o anjo da morte continuava pairando sobre todos. Milhares de criaturas tiveram seu amor-próprio ultrajado, milhares tiveram seu orgulho satisfeito e milhares repousaram nos braços da morte. Quantas estrelinhas espetadas, quantas colhidas, quantas Ana, quantos Vladímir, quantos túmulos róseos, quantas camadas de véus! E sempre aqueles mesmos sons a ressoar dos bastiões; sempre os franceses a observar de seu campo, pela noite clara, com involuntário tremor e secreto horror, a terra sulcada e amarelada dos bastiões em que se movimentam as figuras escuras dos nossos marinheiros, e a contar as canhoneiras de onde sobressaem, ameaçadores, os canhões de ferro fundido; sempre o sargento a observar pela luneta, da torre do telégrafo, as figuras multicores dos franceses, suas baterias, tendas, colunas a se deslocarem pela montanha Verde e as fumaças que se elevam sobre as trincheiras; e sempre multidões heterogêneas, pessoas de várias partes do mundo, com desejos ainda mais variados, a se precipitarem para este fatídico lugar, animadas por um mesmo ardor(...)
Mikháilov olhou de relance: o ponto iluminado da bomba parecia estar em seu zênite — uma posição que torna decididamente impossível determinar a sua direção. Mas isso durou apenas um instante: a bomba, sempre mais rápida, sempre mais próxima, já deixava entrever as fagulhas da sua fuselagem e ouvir seu fatídico assobio, baixando certeira ao centro do batalhão. — Deitem-se! — gritou a voz assustada de alguém. Mikháilov deitou-se de bruços. Praskúkhin involuntariamente acocorou-se e cerrou os olhos; escutou o choque da bomba contra a terra dura, por ali, bem perto. Passou-se um segundo, pareceu-lhe uma hora — a bomba não explodia. Praskúkhin, atemorizado, perguntava-se se não seria vã a sua covardia — talvez a bomba houvesse caído bem longe, talvez tenha ouvido apenas o siflar do projétil. Abriu os olhos e, com uma satisfação egoísta, percebeu que Mikháilov, a quem devia doze rublos e meio, estava a seus pés, completamente estendido, imóvel, estreitado contra ele, deitado sobre o ventre. Nesse momento, seus olhos encontraram a escorva inflamada da bomba, que girava a um archin de distância.Um horror, um horror gelado que aniquilava todo pensamento e sentimento, apoderou-se dele; cobriu o rosto com as mãos e caiu sobre os joelhos. Passou-se ainda um segundo — um segundo em que um mundo de sensações, pensamentos, esperanças e recordações atravessaram-lhe a imaginação. “Quem será morto, eu ou Mikháilov? Ou os dois juntos? Se for eu, onde me atingirá? Se atingir a cabeça, é o fim; mas se atingir a perna, podem amputá-la, e vou pedir que me apliquem clorofórmio — ao menos estarei vivo. Mas é possível que seja apenas Mikháilov e então eu vou contar que estávamos juntos, que o mataram e seu sangue me encharcou. Não, está mais perto de mim — serei eu.” Lembrou-se aqui dos doze rublos que devia a Mikháilov, lembrou-se de outra dívida em Petersburgo que já há muito deveria ter honrado; veio-lhe à memória os motivos ciganos que havia cantado na véspera; surgia em sua imaginação a mulher que amava, com sua touca de fitas lilases; lembrou-se do homem que o ofendera cinco anos antes e a quem ainda não fizera pagar pela injúria; entretanto, inseparável dessas impressões e de milhares de outras, a consciência do momento presente — a espera da morte e o terror — nem por um instante o abandonava. “Pode ser que não exploda”, pensou, e fez um esforço desesperado para abrir os olhos. Nesse instante, através das pálpebras ainda cerradas, surpreendeu-o um clarão vermelho; com um terrível estrondo, algo atingiu seu peito, quis correr, tropeçou no sabre que se deslocara sob as pernas e caiu sobre o flanco. “Graças a Deus! Estou apenas contundido.” Tal foi o seu primeiro pensamento, e quis levar as mãos ao peito — mas suas mãos pareciam atadas e sentia como se um torno prensasse a sua cabeça. Diante de seus olhos desfilavam soldados e inconscientemente ele os contava: “Um, dois, três soldados, e ali um oficial de capote forrado”, pensava; em seguida, um relâmpago brilhou ante seus olhos e ele se perguntou se provinha de um morteiro ou de uma bala de canhão. Deve ser de canhão. E novamente uma salva de artilharia, e novamente os soldados — cinco, seis, sete soldados passam à sua frente. E de repente teve medo que o esmagassem; quis gritar que estava contundido, mas sua boca estava seca, sua língua colada no palato, uma terrível sede o atormentava. Percebeu que havia algo molhado em seu peito — essa sensação lhe sugeriu a ideia de água e quis beber esse líquido que o umedecia. “Certamente eu me abri em sangue, ao cair”, pensou, e começou a se sentir cada vez mais invadido pelo terror de que os soldados, que continuavam a passar à sua frente, o esmagassem; reuniu todas as suas forças e quis gritar “levem-me” mas em vez disso lançou um gemido tão terrível, que se horrorizou ao escutá-lo. Em seguida, alguns fogos vermelhos puseram-se a dançar diante de seus olhos — e lhe pareceu que os soldados amontoavam pedras sobre ele; aos pouco os fogos iam se tornando raros, raros, e as pedras o soterravam mais e mais. Fez força para afastar as pedras, distendeu-se e já não via mais nada, não escutava, não pensava e não sentia. Morreu ali mesmo, onde o estilhaço o atingira (...)
Observe antes esse menininho de dez anos (...), observando com uma curiosidade estúpida os franceses e os cadáveres estendidos sobre a terra, enquanto colhe flores azuis do campo, espalhadas por todo esse vale funesto. Ao voltar para casa com um grande buquê, tapa o nariz para evitar o odor que o vento lhe traz dos corpos reunidos em montículos, e contempla longamente um horrível cadáver decapitado (...) Depois de um bom tempo imóvel, aproxima-se e toca com o pé o braço regelado e estendido do cadáver. O braço balança ligeiramente. Toca novamente com mais força. O braço balança novamente e volta para o lugar. O menino, súbito, dá um grito, esconde o rosto nas flores e sai correndo a perder o fôlego na direção da fortaleza.
No terceiro e último andamento - Sebastopol em Agosto 1855, contemplamos, através do olhar dos irmãos Kozieltsov a crescente desolação e angústia que tomam conta da cidade e culminam na tragédia anunciada dos dois infelizes protagonistas.
"...Eram as mesmas ruas, as mesmas, ainda que fossem mais frequentes os fogos, os ruídos, os gemidos, os encontros com feridos; a mesma bateria, as mesmas barreiras e trincheira que havia na primavera, quando ele estava em Sebastopol; mas, por alguma razão, tudo aquilo agora estava mais triste e ao mesmo tempo mais veemente: mais rachaduras nas casas, não havia mais luzes às janelas, com exceção da casa Kuschina (hospital), não se via mais uma só mulher; não havia mais nas pessoas o antigo ar despreocupado e acostumado ao perigo, e sim sinais de uma espera ansiosa, de cansaço e tensão (...)