"There is a kind of lazy pleasure in useless and out-of-the-way erudition" - JLBorges Arte,história,ciência e cultura em pequenos rectângulos perfurados
Jacques-Louis David foi o expoente maior do Neoclassicismo francês, controverso, temperamental e arrogante, a sua vida e trajetória artística foi alicerçada nas suas relações com o poder político vigente. No inicio da sua carreira, algumas das suas obras foram patrocionadas por nobres e elementos da corte de Luis XVI.Em 1789 é um ferveroso partidário dos revolucionários jacobinos agindo como agente político ativo, enquanto membro da Convenção Nacional, votou a execução de Luis XVI.Durante este período executou várias obras onde se enalteciam os valores e os heróis da Revolução.O conturbado período pós-revolucionário culminou no golpe de estado perpetrado por Napoleão Bonaparte em 1799.Novamente David abraça o poder vigente com tal empenho e fervor tornando-se um dos principais responsáveis pela construção do mito em torno de Bonaparte através da sua representação heróica, quasi-divina, nas suas obras mais emblemáticas, de onde se destaca : " Napoleão cruzando os Alpes (1800-1801)
Quando executou esta obra, David era já um artista reconhecido e aclamado nos circuitos artísticos.Napoleão era o protagonista em ascenção.No ano anterior (1799) levara a cabo um "coup d´etat" que derrubou o governo revolucionário, assumindo a liderança da república, auto nomeando-se Consul geral.Em maio de 1800, Bonaparte lidera o Exercito de Reserva na campanha ao norte de Itália que visava expulsar as tropas austríacas que avançavam para Génova.Essa campanha culminou com a vitória na batalha de Marengo.O sucesso militar consolidou a sua posição política permitindo reformar a França de acordo com a sua visão.
É neste contexto que Carlos IV, rei de Espanha, encomenda a obra a JLDavid , para integrar a sua galeria de grandes líderes militares, no Palácio Real em Madrid.
Napoleão dificultou a vida a David, recusando-se a posar para o pintor na execução da obra, afirmava que :" Ninguém sabe se os retratos dos grandes homens se parecem com eles, é suficiente que o seu génio se reflita neles".Ainda assim foi Bonaparte que propôs que fosse um retrato equestre - "calme sur un cheval fougueux" .Consta que David usou seu filho como modelo, montado numa escada e envergando o uniforme que Napoleão usara em Marengo.O consul ficou muito agradado e lisonjeado com o resultado final que encomendou 3 versões adicionais.David executou ainda mais uma cópia que manteve em sua posse até à sua morte.Em 1801 Napoleão nomeou David o seu " Premier Peintre " sendo nessa função que executa alguns dos quadros monumentais que ilustram a grandiosidade e magnificência de Napoleão, desenvolvendo o Estilo Imperial nas artes visuais.
Napoleão cruzando os Alpes é uma das suas obras mais reproduzidas, mais pela representação de Bonaparte do que pela sua qualidade artística.Ainda assim é um retrato notável de uma riqueza pictórica que faz justiça à mestria do seu autor.
David apresenta-nos Napoleão a liderar as suas tropas (visíveis ao fundo, abaixo da sua montada) numa atitude desafiadora e autoritária, com o braço direito elevado e a mão a apontar para o cume da montanha.A cena passa-se na passagem de São Bernardo, trajeto mítico que permite cruzar a cordilheira Alpina de França em direção à Itália.Já Hannibal e Carlos Magno, haviam, no passado, pisado os mesmos terrenos à frente dos seus exércitos na conquista da apetecida península.A citação, na própria tela, dos nomes dos antigos líderes militares e o do próprio Bonaparte,gravados na rocha, numa clara alusão comparativa entre a glória das antigas figuras e a que Napoleão ambiciona.
A obra sintetiza a imagem que Napoleão projeta, a do comandante supremo e incontestado do seu exército que está disposto a qualquer provação e sacríficio, e a do homem providencial e indomável, que desafia as monarquias europeias sem temor, com o mesmo espírito que enfrenta a natureza inóspita da montanha.De forma quase imperceptível a tricolor (bandeira da República Francesa) esvoaça ao fundo, ilustrando o apoio da nação francesa ao seu líder e, em jeito de premonição, evocam os ventos de mudança que soprando da França em breve transformarão a face da Europa.
A relação de David com Napoleão foi muito para além daquela que se estabelecia entre um patrono e o artista.Desde o inicio da sua carreira David percebeu a importância de estar do lado do poder.No entanto a sua natureza apaixonada, impeliam-no a abraçar as causas assumindo-as para além do mero interesse pessoal.Sofreu as consequencias desse protagonismo fervoroso, com a prisão no período contra-revolucionário, e o exílio, auto imposto, após a derrota e desterro de Napoleão.
As suas obras mais famosas do período revolucionário ilustram temas e mitos clássicos onde se enaltece o sacrificio, pessoal ou colectivo, pela causa pública e pelos direitos sociais universais.A apologia dos ideiais da república não é explícito, mas sub-liminar, o que não sendo propaganda política, "strito sensum", denota o empenhamento político do artista que não consegue definir limites entre a sua produção artística e a sua consciência cívica.
Durante o Bonapartismo,JLDavid, que idolatra a figura de Napoleão, explicitamente assume, nas suas obras, essa veneração.Deixa de haver limites entre a sua arte e as suas convicções, ao ponto de estas se tornarem veículos de propaganda do líder, promovendo a sua mitificação.David não é o único a fazê-lo.Napoleão,mais que um exímio estratega militar, era um político à frente do seu tempo que percebia a necessidade do apoio popular para levar a cabo as suas dispendiosas campanhas.Para isso fazia-se representar, nos retratos,que encomendava aos mais proeminentes artistas franceses, ora em pose austera, ora humanizada mas sempre em contextos de glorificação ou enquadramentos de divinificação mitológica.
David propoem realidades alternativas nas obras em que representa Napoleão, distorcendo a factualidade histórica ou adicionando elementos à composição com o propósito, não de equilibrar o resultado visual final,mas de conferir uma verosimelhança fictícia que favoreça a mensagem propagandística.
Dr. Michael Paraskos
Imperial College London
Prof. Micah Christensen
História Arte University College Londres