"There is a kind of lazy pleasure in useless and out-of-the-way erudition" - JLBorges Arte,história,ciência e cultura em pequenos rectângulos perfurados
Album de 1971, o quarto, lançado antes do icónico "Ziggy Stardust" que catapultou Bowie para o estrelato planetário. Foi na altura bem recebido pela crítica mas não foi um sucesso de vendas.É para muitos um dos melhores albuns de Bowie.
É um album que se ouve da primeira à última música (8 temas) sem que consiga identificar qual a melhor.Foram lançados 3 singles - " Changes " , "Andy Warhol" e "Life on Mars ?"
É um album inspirador e arrebatador, pensado na totalidade da sua concepção, desde o design da capa até alinhamento das canções percebe-se a mestria e criatividade inesgotável do Bowie ainda a dar os primeiros passos da sua ascenção meteórica.As letras/poemas traduzem as preocupações e os temas que dominavam a cena mediática e cultural do inicio da década de 70. A explosão da Pop Art e da cultura norte americana, o deslumbramento tecnológico motivado pela recente conquista do espaço,a angustia existencial e a desencatada visão do futuro motivada pela guerra fria
Uma das canções menos ouvida e falada é a 3ª faixa do lado A, " Eight line poem" , onde Bowie quase recita um poema minimalista, acompanhado por piano e guitarra, que remete para o lado cinematográfico e metafórico das suas letras.A visão de um cacto na janela de um apartamento nova iorquino ao nascer do sol, que evoca as grandes planicies americanas e onde habita uma gata.Tão simples e tão despojadamente belo.
The tactful cactus by your window
Surveys the prairie of your room
The mobile spins to its collision
Clara puts her head between her paws
They've opened shops down West side
Will all the cacti find a home
But the key to the city
Is in the sun that pins
the branches to the sky
Sexto album de originais lançado em 1973, sucedeu a "Ziggy Stardust" sendo Bowie, por essa altura, já uma estrela internacional.Totalmente escrito e gravado durante a digressão americana da "Ziggy Stardust Tour," reflete a suas impressões, reflexões e influências da sociedade americana.Ao contrário de "Hunky Dory ", mais depurado e intimista , "Alladin Sane" é um conjunto de canções ásperas,rudes, na sua maioria, onde as letras ilustram ambientes de decadência urbana, povoados de droga, violência, vidas marginais e morte.É também uma obra que reflete o conflito interior que opunha o estrelato e a necessidade de recolhimento.Após o sucesso meteórico com Ziggy sentia uma angústia relativamente ao rumo a dar personagem que havia criado.Assim e segundo o próprio, criou um "alter ego" de Ziggy que seria uma espécie de personagem secundária tipo "Ziggy under de influence of America"
Essa "persona" caótica e decadente a que chamou Alladin Sane um trocadilho com "A Lad Insane " apresenta-se na capa do album (autoria de Brian Duffy) com uma figura pálida com o rosto dividido em 2 por um raio vermelho e azul de olhos fechados expressando essa ambivalencia entre a estrela e a solidão evocando uma máscara de morte.Ficou para a posteridade como uma das imagens mais icónicas de Bowie e de toda a historia do Rock que um crítico britânico apelidou de " a Mona Lisa das capas de albuns"
Quando escutamos o album ficamos com um estranho "paladar" na mente.Para além das letras, algumas "nonsense" ou ambíguas, as atmosferas sonoras de algumas canções carregadas de um perfume agridoce,saturado,remetendo para os "speakeasy" e cabarés dos anos 20, ou mesmo, para os filmes noir, são entremeadas por outras evocando cenários pós apocalipticos ou ambientes de urgência desesperada e sem retorno .
"Jean Genie" foi o primeiro single do album e é o tema mais ouvido e reconhecido do album.Mas por uma questão de mero gosto pessoal destacaria 2 temas, a que não é alheia a presença "jazzie" do piano de Myke Garson.O primeiro é o tema que dá o título ao album "Aladdin Sane (1913-1938-197?)" que terá sido inspirada no romance de Evelyn Waugh - "Vile Bodies".Facto curioso são as datas entre parentesis que mais não são que os anos que antecedem as 2 guerras mundiais e a eventual 3ª guerra que Bowie acreditava, então, estar próxima.O segundo tema é "A lady grinning soul", uma colossal canção que, depois de todo o frenesim, encerra o album com a serenidade embalada da guitarra e piano, ao estilo hispânico e, em harmonia com a voz sussurrada de Bowie evocando, na voz e na palavra os cabarés parisienses.
Garson define assim o tema :"...about as romantic as it gets … French with a little Franz Liszt thrown in there... ( nem mais!)
Numa entrevista de 1973 David Bowie descreve assim o album :
"Part of Aladdin Sane’s music is strange, weird. I have been influenced by some of the best and most advanced musicians of jazz, such as Mike Garson or Keith Tippett. Mike is playing with The Spiders, and the music that he develops goes from a basic theme, on which I and the musicians improvise. I love glam rock, but just by itself leaves me few options."
Segundo album da chamada triologia de Berlim e o 12º album de originais de Bowie que se mudou para Berlim no final de 1976.No inicio do ano seguinte edita "Low" e em outubro do mesmo ano lança "Heroes".Bowie ruma a Berlim ocidental atraído pelo experimentalismo musical alemão, que ficou conhecido por "krautrock", onde pontuava uma musicalidade atmosférica, abstrata, não narrativa, que usava os recursos eletronicos para desenvolver ambientes industriais e futuristas.Bandas como os Kraftwerk e os Neu! influenciaram decisivamente a sonoridade da triologia que culmina com "Lodger" (1979).Se "Low" é puro experimentalismo com vários temas instrumentais e minimalistas, "Heroes" incorpora um Pop positivo e comprometido.O ambiente social e político da época, dominado pela Guerra Fria, era sentido de forma particularmente vívida na cidade dividida de Berlim.O estúdio de gravação, Hansa Tonstudio, situava-se junto ao Muro de Berlim com vista previlegiada de Berlim oriental.Não é por isso de estranhar que a amargura e solidão, sentidas pelos Berlinenses, fosse fonte de inspiração dos albuns da triologia.Esse sentimento é bastante expressivo em "Heroes" e de forma particular no tema que dá nome ao album.Há,no entanto, de forma subliminar, uma esperança contida e um optimismo indisfarçavel que, a esta distância podemos definir como sinais, leves, mas premonitórios de um futuro menos sombrio e mais justo.
Berlim foi para Bowie, mais de que uma cidade onde viveu e reinventou a sua música.Foi o refúgio, um local, quase místico, onde se submeteu à purificação da sua alma desolada por anos de vício, da impossibilidade de "despir" a persona que alimentava o mito construído à sua volta e da exposição permanente.Berlim era concreta, densa, impenetrável.Nela Bowie recuperou o anonimato, a sombra criadora que lhe permitiu apagar a "aura luminosa do estrelato" que o esgotava e esvaziava.A inspiração na obra de Heckel para a capa do album reflete essa depuração do superfluo, a invocação do expressionismo,a procura da experiência emocional e primitiva em detrimento da realidade física.Essa é a essência do album e também o estado de espírito do autor nessa época de recolhimento e descoberta.
Oito anos depois
O 15º album de estúdio,editado em 1983, é, sem sombra de dúvida, o maior sucesso comercial da carreira de David Bowie.É um claro mergulho no pop/funk, género que dominava a cena musical da primeira metade dos anos 80.Foi um album que despertou "mixed fellings" : os fans mais conservadores não conseguiram identificar a qualidade e inovação a que se tinha habituado e acharam que Bowie se tinha rendido ao "mainstream", no entanto, para muitos "Let`s Dance" foi o primeiro contacto com Bowie e por ele descobriram o seu talento passando a seguidores apaixonados da sua obra.Ouvido com mais de 30 anos de distância, continua a reconhecer-se a frescura um tanto ingénua que resiste à passagem dos anos.Os singles "China Girl" , "Modern Love" e o "Let´s Dance" são hoje clássicos da década.
Foi o segundo single do album, que no entanto, não é um original de Bowie.O tema foi editado em 1977 integrado no primeiro album de originais de Iggy Pop - "The Idiot".O seu produtor foi Bowie e a sua gravação ocorreu durante o período em que ambos partilhavam o apartamento em Berlim.Nesse mesmo ano Bowie edita os albuns "Low" e "Heroes"A influencia de Bowie em "The Idiot" é tal que este é frequentemente nomeado, oficiosamente, como o 1º album do período Berlinense de Bowie.
O tema conta a história de amor não correspondido que, alegadamente, Pop nutriria por Kuelan Nguyen,vietnamita, companheira do artista francês Jacques Higelin com quem partilhavam o estudio de gravação no Château d'Hérouville.
Em 83 Bowie recupera o tema, "limando" as arestas retirando a cobertura áspera e crua da versão de Pop expondo a sua inspiração romântica inicial.Descubra as diferenças
Vigésimo album de originais lançado em 1996,representa mais uma reviravolta no percurso musical, único, de Bowie.Absorvendo as novas tendências sonoras, consegue, com mestria, procurar novos caminhos, arriscando e rompendo os canones do momento,sem comprometer a sua identidade artística.
A década de 90 arranca ao som do "Drum and bass" e da eletrónica dançável.Nomes como Tricky, Massive Attack, Prodigy entre outros produziam os ambientes dos clubes de Londres e Nova Iorque e das "rave parties" que Bowie incorporou e estilizou.Na época soou estranho.O Bowie, do Glam rock, dos sons noturnos de Berlim, da Pop dos "eighties" não era facilmente reconhecível.No entanto estava lá, e só após alguns anos de maturação se consegue, como num bom vinho,identificar os diferentes aromas e palatos e perceber a complexidade e a vanguarda aqui protagonizada.Não foi um sucesso comercial, como seria de esperar (...) ainda assim alguns temas lançados em single tiveram algum sucesso, sem atingir o topo das principais listas de vendas, entre eles " Little Wonder " , "Seven years inTibet" e "I´m afraid of americans"
Em "Seven years in Tibet", Bowie, recuperando o título do romance biográfico de Henrich Harrer (1952), mais tarde - 1997, adaptado para o grande ecrãn por Jean-Jacques Annaud) faz uma interpretação gráfica e metafórica do sentido da vida, e da morte, centrado no Budismo como pano de fundo, em contraponto " I´m afraid of americans" questiona e critica o "monoteísmo cultural" americano que uniformiza,subjuga e massifica as diferentes formas de expressão cultural e artística.
Os videoclipes são particularmente expressivos e contundentes e merecem uma audição visual mais atenta.
Sete anos no Tibete foi adaptado para o cinema em duas longas metragens a primeira em 1956 por Hans Nieter e em 1997 por Jean Jacques Annaud com Brad Pitt como protagonista infelizmente não disponivel para reprodução (deixo aqui o link onde pode ser visualizado em HD)
Vigésimo quinto e último album de Bowie é por ventura o mais complexo e introspectivo de todo o seu trajeto artístico.Reconhecido como artista de múltiplas identidades apresenta-se despido dos seus "heterónimos" em nome próprio em confronto consigo mesmo.Lançado a 8 janeiro de 2016, data do seu aniversário e 2 dias antes do anúncio da morte.Apesar da sua doença terminal, cujo conhecimento foi mantido em segredo, Bowie empenhou nele toda a sua vitalidade criativa e a motivação por desenvolver novas sonoridades.
Tony Visconti, seu amigo e produtor, classifica "Blackstar" como o canto do cisne e como um presente de despedida à sua imensa legião de fãs.
Mais uma vez rompe com o seu passado e viaja por ambientes sonoros improváveis.Inspira-se no rap alternativo de Kendrick Lamar, e no seu aclamado "To pimp a butterfly", que combina com freeJazz experimental e virtuoso e sonoridades eletrónicas, hip-hop e drum`n`bass recuperadas de experiências anteriores de que resulta um todo absolutamente genial sem se perder o cunho pessoal e intransmissivel de Bowie.
Recruta para a sua produção músicos de excelência, de entre eles o saxofonista Donny McCaslin e o seu quinteto,o percussionista James Murphy (LCD soundsystem) entre outros.
O resultado final é sublime.Uma espécie de "requiem" contemporâneo, uma exposição,quase visceral, do humano-artista, por de trás das multiplas interpretações de si mesmo.É um album total, cada tema depende dos restantes para uma completa significância.Ainda assim, a audição de cada tema, isoladamente, é uma experiência emocional única e irrepetível.
O universo criativo de Bowie é uma constelação de personagens sub ou extraterrenas, que emergem ou submergem em atmosferas glamorosas ou decadentes, futuristas ou quotidianas.É na letra das canções que reside a substância desse universo, ambíguo, difuso, susceptível de diferentes leituras e audio-visões ("sound and vision").O jogo de palavras, os recursos expressivos,o uso do calão e de vocábulos arcaicos ou fictícios que dificultam a interpretação mas conferem espessura e densidade aos mundos sonoros e literários do autor.
Em Blackstar esse mundo é essencialmente interior, pessoal e solitário.Ainda assim Bowie deixa espaços em branco para serem preenchidos pelas vivências pessoais dos ouvintes.
"Girl loves me" quinto tema do album é o exemplo perfeito dessa vontade convocar, não só as emoções e vivencias do ouvinte, mas também convidá-lo a um exercício intelectual e interpretativo que lhe permite a liberdade de "viver" o tema e acolhe-lo ao seu universo pessoal.
Bowie faz uso neste tema do "Nasdat" dialecto ficcional, inventado por Anthony Burgess para a sua obra distópica - Laranja mecânica, imortalizada em filme por Stanley Kubrick.O Nasdat combina vocábulos eslavos com o "Cockney" do East End londrino (calão das classes operárias) .Recorre também ao "Polari " linguagem secreta usada pela comunidade gay na década de 60 e 70 do século XX, mas que já era falada no séc. XIX pelas comunidades marginais dos artistas de circo, atores, marinheiros e criminosos de toda a índole.
Para quem estiver interessado em aprofundar o universo, aqui apenas aflorado, de David Bowie, personagem incontornável da cultura pop do sec. XX/XXI, recomendo o site Bowie Bible